Eu
estou cansada – e até mesmo revoltada – de ler comentários acintosos e muitas
vezes, debochados, em relação aos professores estaduais do Rio de Janeiro.
Cansei de ler em jornais online como “O Extra” e “O Dia” comentários como “ Tem
mais é que privatizar tudo.” , “Os professores só trabalham dezesseis horas semanais, estão reclamando de
quê?” Vê-se bem que a grande maioria da população, principalmente aqueles que
não possuem necessidade de ali colocarem seus filhos e, até mesmo os que nelas
os têm, desconhecem a realidade do que é a escola pública no Rio de Janeiro.
Sou
filha de professora de escola pública do referido Estado. Trabalhei no mesmo,
durante 26 anos com duas matrículas e, com meu salário, sustentei a mim e meus
pais adotivos, enquanto vivos. Apaixonei-me pelo magistério público estadual
aos cinco anos de idade, quando minha mãe biológica – que era excelente
alfabetizadora, por sinal – levou-me um dia para conhecer a escola e o trabalho
dela. Na ocasião, ela era alfabetizadora de adultos, à noite, no Curso
Supletivo. Durante o dia, ela me alfabetizava e, à noite, os alunos. Aquela
noite em que fui à escola, foi mágica para mim! Vi minha mãe segurar as mãos de
homens e mulheres, adultos de diferentes idades, muitos deles já idosos, para
ensinar como traçar corretamente as palavras; vi-os balbuciar e soletrar as
palavras que ela colocava no quadro de giz e vi a alegria no sorriso deles,
quando minha mãe os elogiava e eles percebiam, que estavam começando a ler. Ali
defini o meu destino! Queria fazer parte daquela magia de abrir o mundo do
conhecimento para as pessoas... Desde aquele dia, soube que queria ser
professora! Passei a ter isto como meu objetivo de vida e à tarde, após minha
mãe biológica dar aula para mim, eu colocava todas as minhas bonecas sentadas e
“dava aula” para elas.
Aos
14 anos e meio, quando no primeiro dia de aula no antigo 2º Grau (hoje Ensino
Médio) e concomitantemente no Curso Pedagógico (antigo Curso Normal), disse à
minha mãe adotiva : “Hoje estou começando a realizar meu sonho: vou ser
professora e ter duas matrículas no Estado.” Minha mãe perguntou o porquê de
querer o Estado. E então respondi: “Porque estas crianças são as que precisam
mais de mim. Elas precisam de bons professores, pois elas só tem ali, na
escola, a chance de aprender. Seus pais não podem pagar professores
particulares, quando precisarem. E os alunos com uma situação melhor de vida,
sempre poderão ter a mim, como professora particular.” E foi exatamente isto
que aconteceu nos meus – até agora – 36 anos de magistério. Trabalhei 26 anos
em sala de aula no Estado, em três escolas diferentes (sendo uma um CIEP) e 5
anos e meio como diretora. Aposentei-me com 25 anos em uma matrícula na mesma
escola. E só me aposentei, porque sofri um acidente que me deixou
impossibilitada de ir ao trabalho. E, antes que a perícia médica estadual me
aposentasse por invalidez, como já tinha tempo de serviço e idade, por lei,
para aposentar, resolvi tomar este caminho.
A grande maioria (99,99%) dos professores
que conheci onde trabalhei, têm uma história de paixão pelo ato de ensinar como
eu. Muitos deixaram outras profissões até mais rentáveis, para ingressar no
magistério público estadual. Tive o privilégio de trabalhar com professores que
durante o dia exerciam a advocacia, a engenharia e outras profissões e, à
noite, iam dar aulas. Aliás, tive o privilégio de trabalhar durante 26 anos,
com excelentes professores! Ensinar é tão apaixonante, que se torna um vício,
uma cachaça... Não estamos lidando com números ou máquinas, mas sim com seres
humanos em processo de crescimento e formação! Quem não está ali por amor à
profissão, e não consegue se apaixonar pelo que faz com o tempo, ou troca de profissão
ou é profundamente infeliz...
As
pessoas que criticam os professores estaduais esquecem que todos nós tivemos o
privilégio de passar por um concurso público, que muitos tentam por anos a fio
e não conseguem... Os professores estaduais são a “nata” do magistério. Até
isto cheguei a ler nos comentários de jornais: “Muitos deles (os professores)
entraram pela janela!” “É um cabide de empregos” “Depois que entram, vivem
doentes e não trabalham!” A quem pensa assim, respondo com um ditado em espanhol:
“Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay.” (“Eu não acredito em bruxas,
mas que elas existem, existem”). Ouvi muita gente falar em “professores que
entram pela janela”, mas nunca conheci nenhum! Todos eram concursados como eu!
E a escola onde trabalhei por 25 anos tinha da alfabetização ao 3º ano do
Ensino Médio, regular e supletivo, e uma média de 156 a 160 professores lotados
na mesma. Quanto a ficarem doentes, infelizmente, isto se deve à própria
profissão estressante que escolhemos... Depois que me aposentei, 90% de minhas doenças acabaram... Nunca mais
tive uma dor de cabeça (excluindo a última dengue e chikungunya que tive!) – e
antes era acometida, constantemente, por terríveis enxaquecas. Os professores
deveriam ganhar adicionais por insalubridade e periculosidade! O que narrarei a seguir, explicará esta
posição.
O
professor estadual (e qualquer outro professor) não trabalha apenas as 16, 30
ou 40 horas semanais na escola. A nossa profissão é uma das poucas, que leva
trabalho para casa e trabalho duro! Aqueles que lecionam disciplinas com apenas
1hora/aula por semana em cada turma, têm 12 turmas por semana (as restantes 4
horas/aula são para planejamento, reuniões com a coordenação, direção, etc.).
As turmas têm em média 40 alunos (muitos vezes chegam a 50, se couberem na sala
de aula). Eu própria, tendo sido alfabetizadora durante 5 anos, nunca tive
menos de 35 alunos em sala de aula – mesmo quando a Lei Estadual previa que o
máximo permitido eram 25 alunos. E minhas colegas alfabetizadoras tinham a
mesma quantidade que eu... Um professor tem de preparar cada aula, em casa,
meticulosamente, levando em conta o tempo, de 50 min, da hora/aula. Dos 50 min,
ele precisa tirar cerca de 5 min, para a troca de uma turma para outra (muitas vezes,
em andares diferentes do prédio da escola). Após entrar em sala, precisa
“acalmar” a turma que já se agitou com a saída do professor anterior e conferir
se todos estão em sala ou se algum saiu – sem permissão, lógico, para beber
água, ir no banheiro, tentar dar uma voltinha no pátio ou se esconder no
banheiro para “matar aula” e, se possível, conseguir sair da escola e caso
falte algum aluno, comunicar à coordenação de turno. Nisto ele já perdeu cerca
de 10 min. Após estes tramites, tem de fazer a chamada – mais 5 min, se a turma
estiver tranquila e em paz! Até agora, dos 50 min, ele perdeu 15 min e lhe
sobraram 35 min. Pode então começar sua aula – mas precisa olhar o relógio
frequentemente, pois 5 min antes do final da aula, necessita começar a preparar
sua saída para outra turma, que envolve não apenas, muitas vezes recolher
trabalhos, exercícios provas, etc, dos alunos ou recolher o próprio material,
mas também apagar tudo que está escrito no quadro de giz (é, ainda é usado giz
no Estado, porque muitas vezes o mesmo não tem verba para o pilot da parte do
quadro branco e é mais barato o professor, muitas vezes, comprar seu giz!),
pois deixar o quadro “sujo” para o professor seguinte é falta de ética
profissional (para quem não sabe o professor tem sua ética profissional!) Então, restou a este professor de 1hora/aula,
30 min efetivos de aula. E quando o sinal toca, correr para outra sala. Se isto
não é uma maratona, não sei o que mais é...
Este professor citado acima, tem 12
turmas de séries diferentes, com um planejamento diário diferente para cada
turma, pois o andamento de cada turma é único. Se ele tiver 40 alunos em cada
turma (queira Deus!), ele terá 480 alunos por semana. Isto significa 480
exercícios, provas e trabalhos para corrigir bimestralmente, pois desde 2008,
passou a ser exigido que a nota do aluno se dividisse entre prova, trabalho,
exercícios e desempenho, todos anotados e somados no diário de classe. Além
disso, ele tem de preencher o diário de classe – muitas vezes é o professor que
preenche no diário o nome completo do aluno, data de nascimento e turma de
origem – diariamente, não apenas com a frequência, mas com conteúdo, nota,
somatórios e no final do bimestre também preencher o canhoto, que será entregue
à direção, e registrar todas as notas do bimestre na última página do diário.
Além disso, desde que a Secretaria de Educação se digitalizou, isto vai para
cerca de 10 anos talvez, o professor tem de inserir a nota de todos os alunos
na internet, no prazo préfixado pelo Estado, prazo este que muitas vezes é
impossível de ser cumprido, pois a internet fica congestionada e cai – isto
quando não acontece, como aconteceu durante muitos anos, de digitarmos as notas
e as mesmas sumirem do site. Passamos então a imprimir a página do site do
Governo, com dia, hora e notas inseridas para comprovar à direção que havíamos
feito o trabalho a nós imputado (eu mesma, em um bimestre, imprime e refiz 5
vezes a colocação das notas na internet, pois quando o dia virava, as mesmas
sumiam...). Trabalho este, por sinal, que não deveria caber ao professores e
sim, à Secretaria da Escola! Aliás esta é uma das reivindicações das últimas
greves.. Além disto, os professores têm de aplicar SAERJ e SAERJINHO – provas
específicas preparadas pelo Estado, para preparar o aluno para a Prova Brasil,
que vem do Governo Federal (prova esta implantada desde 2008 pelo Governo
Federal, num acordo com o Banco Mundial e UNICEF, quando surgiu o Projeto PDE –
Plano de Desenvolvimento da Educação – e dentro dele, o PDE Escola, que tem por
objetivo que todos os alunos dos países em desenvolvimento, cheguem em 2024 à
média de aproveitamento escolar 6, em Língua, no nosso caso Portuguesa, e
Matemática e ao qual está atrelado possíveis financiamentos educacionais ao
nosso País ou não). O fim destas provas – SAERJ e SAERJINHO – também tem sido
motivo de pauta das greves dos professores e até dos alunos... E, de uns tempos para cá, é exigido aos
professores de cada área específica que façam projetos, bimestrais ou
semestrais, que envolvam os pais, a comunidade, etc, onde os professores,
juntamente com os alunos têm de usar toda sua criatividade... Muitas vezes com
apresentações em praças públicas, visitas a exposições (sem ônibus especial! –
usando o ônibus comum, Barcas, Metrô e muitas vezes o professor tendo de
discutir com os funcionários dos meios de transporte citados, que não gostam da
presença de alunos, pois alegam que os mesmos “depredam” os veículos)
E o professor para fazer isto, tem de
ter Licenciatura Plena, no mínimo (4 a 5 anos de faculdade), ser concursado,
pode ser lotado, muitas vezes, em 2, 3 ou até mais escolas diferentes – tendo
de correr de uma escola para outra ... Outra reivindicação das greves e isto
por apenas R$ 1.179,35 brutos – o líquido é bem menos com os descontos (para os
iniciantes durante 5 anos até que possa trocar de nível, segundo a Lei de Nº
1614. de 24 de janeiro de 1990, que é o nosso Plano de Cargos e Salários,
assinada depois, principalmente de uma greve em 1988, onde os professores, em
manifestação pacífica diante do Palácio das Laranjeiras, foram agredidos por
policias com bombas de gás lacrimogênio, cassetete e cachorros, por ordem do
então Governador Moreira Franco. Nesta ocasião foi aberta a temporada de caça
ao professores que continua aberta até hoje e agora, estendida aos alunos – eu
pensei que estávamos numa democracia e não ditadura... me enganei? -, pois
afinal, parece que quem faz isso com professores é premiado com o cargo de
Ministro do Governo Federal...) pelo então Governador Moreira Franco, que vetou
o artigo 37 deste Plano ainda preparado no Governo Brizola e que rezava que “o
piso mínimo do professor deverá ser de 3 salários mínimos e meio”. Artigo este
que pode ser lido no Diário Oficial, na proposta inicial do Plano! Se ele não tivesse vetado este artigo, o
professor estaria ganhando um salário justo! Mas após 3 anos tendo greve, ou
aceitávamos este veto ou não teríamos Plano de Cargos e Salários. Aceitamos o
veto para termos um Plano, por sinal muito bom, mas que muitas vezes é
descumprido, como durante todo o Governo Marcelo Alencar (01/01/95 à 01/01/99),
em que tivemos a troca de nível congelada. Já ganhamos esta ilegalidade na
Justiça, o Governo não tem mais como recorrer, a ordem judicial foi de que
fosse pago, com juros e correção monetária aos professores prejudicados como eu
e meus colegas desta época (infelizmente, muitos já morreram como minha mãe
biológica...), e o Governo Pezão, se não me engano, estava estudando a forma de
pagamento dos ressarcimentos das perdas, quando veio a crise... e o assunto
morreu. Quanto ao piso que a Secretaria de Educação divulgou, em próprio site
de R$ 2.211,25 – esqueçam! Este piso é
para 30h/a semanais e a imensa maioria dos professores é de 16h/a semanais com
o valor dito acima. Ele não tocou em momento algum no valor real, para enganar
quem não conhece a realidade. Quanto ao auxílio-transporte, auxílio-alimentação
e auxílio-qualificação, também esqueçam! Ele dá e tira quando quer. Não
queremos “auxílios”, mas sim um salário digno! Cansei de ouvir governadores
dizerem que o Magistério é “um sacerdócio”. Não exercemos “sacerdócio” – somos
profissionais como qualquer outro, que exerce sua profissão e se a fazem por
amor é porque fazem o que gostam! Aliás, até sacerdotes e pastores recebem
salários! O ditado “quem trabalha de graça é relógio”, só vale para relógio do
sol, pois os demais, precisam que se dê corda ou troque a bateria...
Deve-se lembrar que o piso salarial
mínimo do Estado do Rio de Janeiro, segundo a lei de nº 7267, de 22/04/2016 é
de R$ 1.052,34, para , entre outros, empregados domésticos, contínuos,
serventes, lavadores e guardadores de carros. Nada contra estas profissões.
Acho justo que ganhem o devido. Mas também creio que há algum problema no
Estado, em que um professor que necessita ter toda a formação e concurso
citados ganhe apenas R$ 127,01 a mais que o piso mínimo estadual... “Tem algo
de podre no reino da Dinamarca”
(“Hamlet” – Shakespeare). Isto leva o professor a fazer
GLPs no Estado (dobradinhas que o Estado oferece, enquanto não tem professor
concursado para ocupar a disciplina), ser “sacoleiro”, dar aulas particulares,
fazer doces e salgados para fora, ser promotor de festas infantis, para
completar a renda familiar, enfim, se virar nos 30, 15, 10, pois sim, ele tem
família, o dinheiro não dá para pagar empregada, tem contas e impostos a pagar
e tem todo o serviço de casa para fazer, além de estar sempre precisando se
reciclar e estudar (não me perguntem como conseguimos esta mágica, pois nem eu
sei como consigo andar na corda bamba há 29 anos... talvez sejamos bons
equilibristas!). E depois as pesquisas não sabem o motivo dos professores
públicos serem os que mais ficam endividados ou pegam empréstimos... No final das contas, o professor tem tripla ou
quádrupla jornada... Neste andar da
carruagem, prevejo que nossa classe se torne uma classe em extinção...
Engraçado, no período da Ditadura o professor era valorizado e as escolas
públicas estavam entre as melhores... Nossos pais estudaram nelas... Afinal, o
salário dos professores vem dos impostos – eu própria contribuo para pagar
minha aposentadoria... E a classe média (baixa, média ou alta) perde
duplamente, pois paga os impostos e ainda precisa pagar escola particular para os filhos, em busca de uma melhor
qualidade de ensino... Mas a qualidade de ensino do magistério estadual não é
culpa dos professores e sim, do próprio Estado que não lhes dá condições, da
Lei de Ensino (LDB – Lei de Diretrizes e Bases) 9394/96, assinada pelo então
Presidente Fernando Henrique Cardoso (que em muitos sentidos, mais prejudicou
do que ajudou, pois afinal não somos a Itália) e os obriga a greves... Agora,
na Democracia, temos 200 dias letivos (de aula) e o conteúdo das disciplinas
está diminuindo cada vez mais... Hoje não se dá nem 1/10 do conteúdo que era
dado na década de 70 e tínhamos apenas 180 dias letivos... Muita coisa que
estudávamos então, hoje se aprende nas faculdades... Esta Matemática do Ensino
não se consegue resolver nem com regra de três simples...
O último aumento que tivemos, foi no
segundo governo Brizola (15/03/91 – 02/04/94). Depois disto, só recebemos
reajustes (tirando o Governo Marcelo Alencar, que nem isto!). Quem entrou no
Estado, como professor, depois de 1994, não sabe qual é o sabor de receber um
aumento de verdade, onde nosso salário é quase duplicado! Digam o que disserem,
não sou partidária do PDT (aliás não acredito em partido algum, atualmente),
mas Brizola deixou saudade na Educação! Principalmente no primeiro mandato, em que
tinha como vice-governador Darcy Ribeiro. A escola tinha consultório dentário e
dentista, cardápio de merenda variado orientada por nutricionistas,
encaminhamento fácil para psicólogos e oftalmologistas, óculos gratuito para
alunos que deles necessitassem, uniformes completos de verão e inverno e de
educação física (dois jogos de cada), material escolar completo – da mochila ao
compasso e esquadro. Para nós, professores, cadernos para planejamento,
canetas, réguas, cartolinas, isopor, etc. O material escolar superabundava... E
minha escola não era CIEP... E o salário era o dobro do colégio particular...
Nem tudo foi perfeito nos dois mandatos dele, mas em comparação a todos os
outros que vieram depois, nunca mais tivemos a valorização que recebemos com ele.
Sei que para outros setores do Estado ele pode não ter sido tão bom Governador,
mas para a Educação, não vejo nenhum outro igual a ele até hoje!
A realidade que o professor do magistério
público estadual do Rio de Janeiro vivencia é muito dura. É a realidade de nossos alunos, que em sua
maioria vem das comunidades e que, por sua vez, possuem uma realidade mais dura
ainda... Considero nossos alunos
sobreviventes de guerra, até heróis mesmo... Apesar de tudo que eles passam,
ainda conseguem aprender... Muitas vezes me perguntei: se eu passasse a mesma
coisa que eles, será que teria ânimo para estudar e aprender? Uma vez uma aluna
de 6 anos me levou às lágrimas (que tive de conter), quando me disse “Tia, na
sua casa não tem tiro todo dia?” Percebi que para ela, era impensável viver em
um lugar onde não houvesse tiros – ela simplesmente não conseguia imaginar
isto... Excetuando o Governo Brizola, em
que recebemos mais apoio, na escola pública precisamos ser psicólogos,
orientadores, conciliadores, terapeutas, enfermeiros e o que mais for
necessário... A autoestima deles, em sua maioria, é muito baixa. Apesar de
imensa maioria ser extremamente inteligente, eles acham que não adianta
estudar, porque as pessoas sempre os verão como “favelados”. Esta é nossa maior
luta – mostrar do que eles são capazes, elevar a autoestima, convencê-los de
que “favela” ou “comunidade” é só um endereço e não o que eles são. Mas
conseguir isto é um trabalho lento, difícil e que precisa de amor, porque sem
isso, não há interesse em aprender ou participar das aulas... Nessa luta, às
vezes ganhamos e às vezes, perdemos. Muitas vezes fico triste quando vejo
excelentes alunos, boas pessoas, entrarem em grupo num shopping e logo serem
seguidos pelos seguranças, por causa do jeito de vestir, falar, andar... O preconceito ainda é grande para com eles!
A máquina do Governo não nos ajuda
muito. Há 19 anos atrás, o aluno que repetisse de ano duas vezes na mesma
escola, precisava trocar de escola, pois isto poderia ser um sinal de que não
tinha conseguido se adaptar. Hoje, ele pode repetir 10 vezes e continuar na
mesma escola. Com o Bolsa-Família e o Bolsa-Jovem que atrelou o benefício à
apenas a frequência na escola, temos salas cheias de alunos que ali frequentam,
muitas vezes apenas obrigados pelos pais, para não perder o benefício e sem
nenhum interesse pela aprendizagem. Se muitos pais são conscientes, que
realmente se preocupam com a aprendizagem dos filhos, também temos pais que
pensam como uma mãe me disse um dia, quando a chamei para falar sobre o
rendimento do filho: “Professora, desde que meu filho venha à escola e consiga
comer, se ele aprende ou não, não me interessa!” Os pais pensam que a escola
pública é gratuita. Não entendem que pagam por ela através dos impostos, até
quando compram uma bala.
A escola não pode rejeitar aluno algum.
A propaganda na TV de inclusão de alunos deficientes e que o professor está
sendo preparado para recebê-los, nunca existiu! Eu me aposentei sem receber
esta preparação. A preparação que recebi, foi no excelente Curso Pedagógico que
fiz na escola em que estudava e aprendemos a trabalhar com autistas,
identificar os diferentes problemas de fala e grafia, TDAH (Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade), superdotação e altas habilidades (aquele
aluno que está acima da média – muitas vezes o que chamaríamos de gênio), etc.
Só para exemplificar, uma professora (quando eu era diretora adjunta) do
Fundamental 1 (antiga 1ª à 4ª séries) me chamou por estar com problema com uma
aluna. Ela não fazia os deveres, se recusava a obedecer à professora, não
falava com os colegas que a rejeitavam e implicavam com a mesma e a professora
não sabia mais o que fazer (numa sala com 40 alunos). Fui falar com a menina,
pedi que me acompanhasse e a reação dela foi nula. Numa segunda tentativa,
percebi que ela olhava fixamente para meus lábios e, pela primeira vez, ouvi
uma resposta dela. Então entendi: ela era surda! Na ficha dela não tinha nada
que indicasse a deficiência e nem a mãe comunicou nada... Então, me abaixei,
fiquei da altura dela (que estava sentada na carteira) e perguntei se ela sabia
a linguagem de sinais, sempre tocando no braço dela e indicando que olhasse
meus lábios. Ela disse que um pouco. Perguntei se ela lia bem os lábios e ela
disse que sim. Expliquei à ela que ninguém na escola sabia linguagem de sinais
e se ela aceitaria sempre ler os lábios. Ela disse que sim. Então, eu e a
professora combinamos que ela se sentaria na primeira carteira, a professora
sempre teria de falar de frente para a turma, para que ela pudesse ler os
lábios da professora, explicamos a situação à turma, fizemos com que
compreendesse como é ruim não ouvir nada, pedimos que a ajudasse e protegesse
no recreio, pois alguém poderia falar com ela e até agredi-la por achar que
estava provocando alguém. A turma compreendeu, aceitou, em pouco tempo a aluna
tinha muitos colegas junto dela, começou a aprender, falava mais, ria e sorria,
enfim desabrochou. A professora não teve culpa em não detectar o problema...
Numa turma de 40 alunos, em sua grande maioria, levados, ninguém comunicou a
ela o problema, estávamos sem orientadora na escola, ela recorreu à mim. Num
golpe de sorte (ou com a ajuda de Deus) consegui detectar o problema dela.
Lidamos com todo tipo de alunos – como
p.ex., usuários de drogas. Minha coordenadora quase foi morta por um aluno de
11 anos que fez uso de crack antes de entrar em sala. Tive de chamar a polícia,
que exigiu a presença do Conselho Tutelar, que por sua vez, com a autorização
da mãe o internou para desintoxicação. Uma colega nossa levou um grande soco na
barriga de um aluno do Ensino Médio, com problemas psiquiátricos, quando o
mesmo recebeu a nota da prova e viu que havia sido reprovado. Este mesmo aluno
atirou uma mesa pela janela do segundo andar no pátio. Graças a Deus não
atingiu ninguém. Após isso, na primeira reforma que teve, grades foram
colocadas nas janelas. Outro, também com
problemas psiquiátricos, atacou um aluno no recreio e um funcionário nosso que
conseguiu dominá-lo. Outra aluna, menor de idade, também com problemas
psiquiátricos, agrediu fisicamente funcionários e diretores e todos foram
registrar o boletim de ocorrência na delegacia. A escola era obrigada (não sei
como isto está hoje) a aceitar alunos do CRIAM por ordem judicial (atual CRIAAD
– Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente - por mudança de
nomenclatura do Governador Sérgio Cabral, segundo Decreto nº 41.983/99, órgão
do DEGASE) – adolescentes infratores que saíam pela manhã para estudar e fazer
cursos e só voltavam à noite. A direção tinha de assinar o horário de entrada e
saída deles, para que apresentassem no CRIAM quando chegassem. A representante
do CRIAM fazia reunião conosco e explicava que eram todos infratores, mas que
embora ela não pudesse dizer o crime que haviam cometido, poderíamos nos
tranquilizar, porque nenhum era assassino (até onde ela soubesse). Dentro do
CRIAM, eles tinham toda uma estrutura e funcionários concursados e treinados
para agir com eles em qualquer tipo de situação. E nós? Que formação recebíamos para lidar com eles? Uma
professora nova (formada há pouco e recém concursada) se atrasou na sala, a
turma saiu para o recreio e ela quase foi atacada pelo aluno, que depois
conseguiu fugir da escola. Só então soubemos que ele já havia fugido do CRIAM
há muito tempo. Como não tínhamos sido comunicados, ele estava frequentando a
aula normalmente. A professora ficou tão apavorada que trocou não só de escola,
mas de município. É verdade que a imensa maioria deles não nos dava problema,
mas era uma preocupação... O uso do estilete para fazer ponta em lápis ficou
proibido desde que uma aluna minha, no intervalo de minha aula, no recreio,
usou o instrumento para esfaquear outra. Muitas de nossas alunas engravidavam
entre 11 e 14 anos, mas a maioria era em torno de 13 anos. Tínhamos uma média
de 4 à 6 grávidas por ano. No segundo Governo Sérgio Cabral foi criado um
sistema de pontuação para o desempenho dos diretores – a chamada meritocracia.
Li também muitos comentários nos jornais a favor desta meritocracia. Pois bem,
a direção perdia pontos, por cada menor grávida... Ora, falta de orientação não era, pois eram
orientadas e aconselhadas da Coordenadora de Turno e dos professores em sala
até a Direção; chamávamos os responsáveis e eles diziam ter aconselhado e nada
mais poder fazer. O que nós faríamos, se nem os pais conseguiam fazer algo?
Colocar nelas um cinto de castidade com cadeado de segredo que só nós
soubéssemos o número? Ou jogar anticoncepcional na cisterna, para à medida que
bebessem água automaticamente se preservassem? Estamos na Idade Média? Muitas
diziam para mim: “Eu quero ser mãe agora. É problema meu!” E aí? Quando
engravidavam, o que podíamos fazer era dar apoio, junto com a família... Não
havia mais o que fazer... Só perder ponto com o Estado. Muitos alunos assistiam
toda a aula, com o celular ligado e alguém (não sabíamos quem) ouvindo nossa
aula do outro lado. Até que o Governador Sérgio Cabral sancionou a Lei Nº 5453,
de 26/05/2009, proibindo o uso de celulares e outros aparelhos em salas de aula
ou outros locais de estudo tanto para alunos como professores. Por tudo dito
aqui, deveríamos ganhar um adicional de periculosidade! É claro que não era a
escola toda. De 2.600 tínhamos às vezes 5 a 10 casos por turno (tínhamos três
turnos). Mas, de qualquer jeito, tínhamos de estar atentos, pois não sabíamos
de onde poderia vir uma reação ou até o perigo. Acrescente-se a isto,
indivíduos estranhos que tentavam adentrar a escola, com a desculpa de beber
água e que nossos porteiros não permitiam. A escola, para segurança de alunos e
professores ficava fechada e a Secretaria da Escola tinha grades. Verdade seja
dita, que podíamos contar sempre com a Ronda Escolar e a PM.
Nas escolas também não têm nada que
nos impeça de pegar doenças de alunos. Perdi a conta do número de vezes que
peguei piolhos. Peguei catapora de uma aluna aos 23 anos. Só não peguei sarna,
porque Deus não permitiu – não conhecia a doença. Os anos de pó de giz
transformaram minha alergia em asma brônquica alérgica. Nos 26 anos de trabalho
adquiri inúmeras doenças por stress. Tendinite na mão, mais de uma vez. E uso
de tala (ou munhequeira) por orientação médica. E trabalhei mesmo assim. Uma
colega teve um problema tão grave na mão que precisou operá-la e era tão
responsável e preocupada com os alunos, que voltou ao trabalho antes do tempo.
Eu própria, após o acidente que sofri, voltei antes do tempo ao trabalho. Fui à
junta médica solicitar meu retorno e tive de assinar um termo de
responsabilidade, para evitar futuros processos ao Estado. Trabalhei sem tirar
licenças até que meu caso se agravou e daí foi só para perícia mensal e
aposentadoria. Trabalhamos com a escola toda em reforma. Tive de tirar licença
por causa da asma e sinusite, tudo baseado em chapas e tomografias. Também
voltei antes do tempo e assumi a responsabilidade perante a junta do IASERJ. No
período em que fui alfabetizadora, nós lidamos com muitas doenças de pele de
alunos, inclusive impetigo. Por isso digo que tínhamos de ganhar por
insalubridade. A população não sabe de nada disso. É fácil acusar, difícil
procurar se informar sobre a realidade.
Para aqueles que acham “um absurdo
professor se aposentar aos 50 anos”, gostaria de lembrar que isto se deve
principalmente ao desgaste das cordas vocais. Só tem direito a esta
aposentadoria o professor de sala de aula, que depois o Legislativo Federal estendeu
aos Diretores, Orientadores e Coordenadores Pedagógicos porque percebeu que o
desgaste deles é semelhante ao do professor de sala de aula. Quantas vezes
encerrei meu dia, totalmente rouca... Quantas vezes eu vi colegas saírem da
sala de aula, no final do dia, totalmente sem voz... Antigamente – costume que
ainda permanece em muitas Universidades Federais – a mesa do professor ficava
sobre um tablado. Isto foi retirado das escolas da Educação Básica. Procurei
saber na Universidade o motivo – e a explicação que recebi é que, erroneamente,
achavam que dava um ar de superioridade ao professor. Mas na verdade, é um
grande auxílio no momento de usar a voz. Pude perceber ao apresentar Seminários
na Universidade como o alcance da voz se torna maior, com esforço menor, pois o
professor de pé, ao falar, sua voz paira sobre a cabeça de todos e o som se
espalha melhor. Não trabalhamos com microfone, apesar dos 40 ou 50 alunos em
sala. Depois, independente da idade que entrou no magistério público estadual,
faz com que muito professor de sala de aula, apesar de ter tempo de serviço, 25
anos de completo exercício em sala, não tem idade, levando-os a trabalhar por
30 ou mais anos. Acrescente-se a isto, que não temos nenhum apoio
fonoaudiológico por parte do Estado, que
nos oriente como trabalhar e preservar melhor as cordas vocais. E, com o
salário que recebemos, pagar um bom fonoaudiólogo está fora de questão! O país
que melhor paga os professores é a Alemanha – mas lá, o professor além de ser
bem remunerado é proibido, por Lei, de trabalhar mais de quatro horas por dia
(o emprego de professor é de dedicação exclusiva), exatamente por causa do
desgaste das cordas vocais. Num sistema de ensino como o de lá, com a
remuneração dada e a valorização do professor, inclusive se preocupando com o
desgaste vocal, a aposentadoria pode ser aos 80 anos, que acho que nenhum
professor aqui do Brasil se incomodaria. As vezes que conversei com professoras
alemãs de férias no Brasil, quando perguntavam como era o trabalho e a
remuneração aqui e eu contava, riam e achavam que era piada, até perceberem que
era real – então me fitavam com infinita pena... Absurdo, para mim, é político
(vereadores, deputados, senadores, governadores, presidentes) se aposentar com
dois mandatos, ou seja, 8 anos! Por isso que nunca voto em ninguém, uma segunda
vez. Recuso-me a contribuir com meu voto para esta aposentadoria absurda! E em
minha carreira, consegui conscientizar muito aluno em relação à esta questão!
É claro que também existe o outro lado.
Quando podíamos ajudar os alunos, todos nos mobilizávamos. No desabamento do
Morro do Bumba, em abril de 2010, todos nós sofremos muito, não só por alunos,
mas também por funcionários que foram atingidos. Colaboramos com dinheiro para
comprar colchonetes, todos fizeram uma varredura em suas casas para ver o que
não estavam usando e podiam partilhar. Muitos foram para colégios próximos ou
no próprio morro, diariamente, para acompanhar a situação dos alunos
desabrigados e ajudar no que pudesse. Quantas vezes tiramos dinheiro do nosso
próprio salário e pagamos cursos para nossos alunos que sabíamos que iriam
aproveitar e que seria mais uma chance de vida para eles. Acho que por isso
fico tão revoltada quando leio os comentários dos jornais sobre funcionários
públicos. Pela minha experiência de 26 anos na ativa, posso afirmar que o mau
funcionário é uma minoria ou então, realmente tive muito sorte nos 26 anos de
exercício. Enquanto diretora adjunta, sou extremamente agradecida tanto aos
professores, pais, funcionários e até mesmo alunos pelo apoio que recebi de
todos. Formávamos um grande time, onde cada um procurava desempenhar bem seu
papel. Existem maus funcionários? Claro. São seres humanos! Digam-me onde
existe ser humano e tudo é perfeito... É mais fácil encontrar problemas nos
altos escalões, nas chefias burocráticas do que com os funcionários do
dia-a-dia.
Para aqueles que acham que se deveria
privatizar tudo, inclusive a Educação, pensem quanto pagam aos colégios
particulares, apesar dos impostos pagos. Lembrem-se de como era a educação na
escola pública nas décadas de 50, 60, 70. Pensem também quais interesses estão
por trás de nos levarem a pensar que o fim da escola pública seria o ideal. Se
tiverem uma experiência ruim com funcionários públicos, lamento! Eu também já
tive – e dentro da própria Secretaria de Educação! Mas quando me lembro do
rosto de todos os colegas que tive por 26 anos, de sua dedicação, de seus
sacrifícios, de sua boa vontade, de sua preocupação com o melhor para os
alunos, sei que o problema não está no funcionalismo ou na estabilidade. Pelo
contrário, a estabilidade permite que nos dediquemos mais. Enquanto estive na
ativa, fiz todos os cursos que o Estado me proporcionou, para dar um ensino de
melhor qualidade aos alunos. E além de ver meus alunos aprenderem melhor, não
tive retorno financeiro algum. Um funcionário ser estável, não significa que
ele está imune ou impune. Existem punições, até severas, para o mau
funcionário. Exerça seu direito de cidadão. Mas exerça com consciência! Existem
formas e formas de falar com alguém. Já vi pessoas abordarem funcionários
públicos com arrogância, como se fossem seus empregados. Até somos, mas também
somos empregados de nós mesmos, pois pagamos impostos também. Eu contribuo para
o pagamento do meu salário e o de meus colegas. Comunique o superior ou órgão superior. Mas
lembre-se que está lidando com um ser humano e que desacato ao funcionário
público também é crime previsto no Código Penal. Ser bom ou mau funcionário
independe de estabilidade. É questão de consciência.
Antes de criticar a nós professores,
pensem o que vocês pais, que em sua maioria trabalham o dia inteiro e, que
muitas vezes, devido à necessidade de sustento da família, pouco veem seus filhos
durante a semana e que, muitas vezes, estão delegando a nós uma tarefa que,
antigamente, não era nossa. A nós competia apenas ensinar, transmitir
conhecimentos, ampliar a capacidade de pensar e de ter uma melhor visão crítica
do mundo e de si mesmo. Hoje, as funções permanecem as mesmas, mas uma nova,
que sempre coube aos pais, foi acrescentada: EDUCAR!